(uma história para ilustrar)
Talvez estejam se perguntando porque estou aqui neste caixão fétido, acolchoado de cetim azul com um travesseiro em minha nuca... Esse corpo ausente que os senhores vêem com esse lindo vestido que tem um lacinho na cintura e um decote quadrado no peito (que já não bate mais) jaz aqui porque um dia, esse corpo, pálido e até doce em meio toda essa obscuridade desistiu de viver.
Com certeza nesta sala onde estão servindo cafés e bolinhos muitas pessoas devem estar se culpando pelo fato acontecido. Quase não dá para ouvir os pensamentos que são abafados pelo pranto daquelas pessoas. Querido leitor, não pense que sou tão malvada assim, quero mais que todos fiquem se martirizando o máximo possível. Afinal todos são seres humanos, uma raça de interesseiros e traidores, e sim, colaboraram para os pensamentos mortais daquele corpo.
Vejamos o pai, com uma face um tanto preocupada... Seus cabelos negros como o da menina, estavam desarrumados. Seu rosto foi preenchido por mais algumas rugas, inchaço e a vermelhidão nos olhos. Suas lágrimas eram enxugadas por um lenço que já se encontrava encharcado no bolso direito de sua camisa verde de botão e que agora pediam socorro ao colo de sua namorada molhando-os e ressaltando seus seios. Eles se abraçam e choram.
A lamentação do pai continua com gritos de “porquê” e suas buscas pela resposta o fazem ficar raivoso. A espuma de sua boca, provavelmente de raiva, fazia-o enlouquecer xingando a mãe da dona do caixão assustando e entretendo a platéia da defunta. Porém, caro amigo, não pense que ele roubou minha cena, tenho minhas cartas na manga! Precisamos nos lembrar de onde estava esse pai quando sua filha esteve doente, onde ele estava quando ela apenas queria saber a verdade dos fatos, onde estava esse pai quando sua filha apenas queria apoio. Deixemos esse pai se acalmar.
O irmão, que se encontrava com uma roupa impregnada de cheiro de hospital demonstrava sua raiva e seu sofrimento para qualquer um que quisesse ver, apesar dele ter vivido todos os momentos com ela quando havia sofrimento, não posso considerá-lo menos culpado. Levando a história como se fosse o dia do juízo final, preciso julgá-lo também, igual a todos os outros. Esse irmão foi o mesmo que a impediu de crescer, que a impediu de viver, que mentia para ela. E agora, devo levá-lo para o inferno ou para o céu? Não, por enquanto deixamo-lo aqui.
Retomando a sala novamente, nela há uma mulher para a qual todos olham: a mãe. Quieta e calada no seu canto, praticamente em estado de choque, não grita, não xinga, nem chora. Entretanto aqueles olhos de ressaca não me enganam: choraram a noite inteira. Seus trajes maltrapilhos e seu cabelo descuidado davam mais ênfase à característica melancólica do local. Seus olhos verdes não eram mais um mar límpido e claro, o rio secou. Apesar da tristeza, um sentimento de ódio também está presente, contudo, sofre calada. Esse foram os mesmos sentimentos que o defunto sentiu quando descobriu que a pessoa a quem mais ama podia estar mentindo e fingindo. Mentiras que envolvem dinheiro ou sentimentos, aquela ex-criança nunca ligou até que começaram a surgir algumas verdades.
Tudo começou quando o pai (lembra? O chorão exagerado) contou o motivo da separação. Coisas absurdas de amor, ódio e traição. [...]
Ao ouvir essa história da própria boca do pai não acreditou. Só que logo começou a encaixar todos os fatos e conclui: é verdade! Descobrindo assim na sua noite de natal menos hipócrita do mundo toda uma mentira por trás de uma família, a loucura natalina tomou conta de usa mente.
Aquele rosto doce e cadavérico sempre teve a máxima confiança em qualquer ser humano principalmente de sua família. Ingenuidade, leitor? Não, isso se chama humanidade. Gastou sua vida inteira depositando confiança em todos: mãe, pai, irmão... Porém, se gasta na vida, recupera-se na morte. Assim pensou que estava no lugar errado, que não era um ser humano e que apenas precisava ir para outro mundo.
Durante todas as festividades de final de ano começou a julgar todos, um a um. Pensou, pensou, e chegou a um veredicto final. Mãe, pai e irmão: inocentes; ela mesma: culpada. Acusada de dar chance ao mundo de ser bom e verdadeiro, de poder confiar. Sentença: a morte.
A loucura festiva foi embora junto com a vida da menina e um pote de remédio. A despedida do ano velho chegava com a despedida da menina. Em seu quarto deixou uma carta agradecendo a todos e falando que os amava, porém afirmando que verdade e confiança são essenciais para manter uma vida.